terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

"Mikaël", Carl Theodor Dreyer (1924)
 

"Mikaël", filme do mago nórdico Carl Theodor Dreyer, baseado no romance de Herman Bang, com uma subtil inspiração no clássico da mitologia grega que narra a relação de Júpiter e Ganimedes, tem um ferrete gravado para todo o sempre ao ser considerado o primeiro filme com um uma temática declaradamente "gay" masculino. Mas, mais do que isso, felizmente também é lembrado como o primeiro filme "kammerspiel" (filme de câmara).
 
O filme conta-nos a história de um triângulo amoroso entre o renomado pintor e escultor Zoret - interpretado pelo realizador de “Haxan”, Benjamin Christensen -, o seu protegido, que se tornou seu modelo, que lhe deu fama aos seus quadros e por quem se apaixonou, Mikaël - Walter Slezak, que mais tarde faria do vilão nazi em "Lifeboat" de Hitchcock - e a condessa Zamikoff (Nora Gregor), uma aristocrata "female fatale". Atraído e seduzido pela beleza da jovem condessa, Mikael começa a distanciar-se de Zoret e este começa amargurar-se com a solidão. Através de Mikaël, a condessa vive com tudo pago discretamente, pelo pintor... mas quando este descobre que o protegido modelo vendeu um quadro que lhe oferecera, assim como desenhos de umas férias, adoece. No leito de morte, Mikaël é chamado a ver o “mestre”, mas a condessa impede que este receba a carta que o convocava... “Agora posso morrer em paz, porque vi amor de verdade”, são as suas últimas palavras.

 
Co-escrito pela mulher e colaboradora de Fritz Lang, Thea Von Harbou e fotografado pelos dois maiores directores de fotografia do cinema mudo, Karl Freund e Rudolph Mate, Dreyer dá-nos mais uma obra-prima de entre as muitas da sua filmografia. Ainda que sem o sentido plástico do assombroso "La Passion de Jeanne d'Arc" (1928), aproximando-se mais dos códigos do teatro e, de certa maneira, podendo ser visto como um antepassado de uma linguagem que ganharia expressão maior no seu último filme, "Getrud" (1964), Mikaël é uma peça fundamental na filmografia de Dreyer.
 
Ao entrar-se em "Mikaël" vamos sentindo-nos progressivamente aprisionados pelos limites físicos que Dreyer impõe ao filme: circunscrito às altas paredes da casa de Zoret. É, pois, um filme sem exteriores - tão só quatro planos -, mas onde o exterior existe como ideia, como o único lugar possível para o amor, para a felicidade. O primero exterior - se é que se pode considerar assim - que nos oferece Dreyer é visualizado através de uma série de pinturas de Zoret. Este “exterior representado” decidirá a sorte de Zoret que, incapaz de livrar-se da teia do tempo passado, acabará a morrer sozinho e sem renunciar ao seu ideal.
 
 

A ideia do exterior como único lugar possível para a felicidade vai-se impondo ao longo do filme, através da consumação da relação entre Mikaël e a condessa, onde uma elipse evita mostrar-nos o que é que sucedeu durante esse tempo (numa sala presidida por uma forte decoração de arabescos - um interior com vocação de exterior -, à pergunta de Zoret “Onde estiveste este tempo todo?”, Mikaël responde-lhe, olhando languidamente o exterior não visto, “No campo”). Será precisamente esta imagem dos amantes no campo que  atormentará Zoret na última parte do filme, onde Dreyer nos mostra numa montagem paralela quase idêntica à que ensaiara em "Prästänkan" (a.k.a. The Parson's Widow) de 1920 e que posteriormente repetirá em "Vredens Dag" (a.k.a. Day of Wrath) de 1943, quando Absalom “vê” os amantes a passear a sua felicidade pelo campo.
A grande ideia temática que se desenvolve ao longo de "Mikaël", e que sustenta este jogo espacial interior-exterior, é a representação da falsidade das relações e actitudes dos personagens. Dreyer desenha o retrato de umas personagens falsas num ambiente falso:A acção decorre numa época em que o ardor e o exagero estavam na moda, e em que os sentimentos se exacerbavam voluntariamente. Uma época de certo modo muito falsa”.

En 1939 Dreyer afirmou numa entrevista que gostava de considerar "La Passion de Jeanne d'Arc" e "Vampyr" como os seus primeiros filmes de verdade. Mas em 1965 a sua actitude mudou, valorizando filmes anteriores e chegando mesmo a afirmar que "Mikaël" era um filme muito importante para ele, por ser um dos primeiros “onde se configura um estilo especial”. Hoje em dia, pensar em "Mikaël" como uma obra falhada não é possível, pois nele está o gérmen de grande parte dos interesses temáticos das suas obras posteriores, guardando um estreito vínculo em particular com algumas delas.

 

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