sábado, 23 de fevereiro de 2013

"Ballet Mécanique", Fernand Léger e Dudley Murphy (1924)


Entre os anos 20 e 30, os artistas das correntes de Vanguarda europeias resolveram experimentar uma nova forma de arte, a cinematográfica, nascendo o Cinema de Vanguarda. Os seus filmes privilegiam o ritmo e o movimento de uma forma não-representativa e não-narrativa, explorando novos ângulos, iluminações e argumentos absurdos e inusitados.
 
O cubista Fernand Léger foi um desses vanguardistas que se aventurou no cinema, transmitindo os seus princípios estéticos nesta curta-metragem "Ballet Mécanique", um dos mais importantes e antigos filmes abstratos, onde predominavam os objectos quotidianos e os seus movimentos. O filme desmembra a máquina e robotiza o homem, colocando-os numa pista de película para dançarem o século que nascia. Não podemos esquecer-nos que o cinema surgiu primordialmente como arte mecânica, em plena era de grandes invenções e do surgimento das mais diversas máquinas, entre elas o cinematógrafo e o cinetoscópio.
 
 
A ideia do ballet surge associada à fluidez da performance humana, onde mais de 300 cenas aparecem como se dançassem uma única melodia, intercalando o material, as formas, movimentos e transformações. Léger faz uma obra poética, porque consegue ver a “harmonia dos movimentos” como um ballet, e tudo, para sua câmara, é dança: letras, palavras, elos, rodas, piscar de olhos, sorriso ... Até as “formas inanimadas” ganham vida através da montagem ágil do realizador, e no meio desse mar de objectos, as inserções humanas também se tornam mecânicas (vide a estranha repetição que ele faz da dona-de-casa a subir as escadas com um saco às costas).
 
A forma como Léger agrupa os fotogramas e formata o filme é essencialmente cubista: todo objecto é representado aos pedaços, triplicado ou quadruplicado num fenomenal jogo de justaposições. Tudo no filme tem movimento e se a imagem é estática (como a barraca de castelos de cartas) a sua estética e composição empreendem movimento em si.
 

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

"Sherlock Jr.", Buster Keaton (1924)
 

"Sherlock Jr." é por muitos considerado o melhor filme do génio de Keaton. Um filme sobre o mundo do cinema, onde Keaton é um projeccionista que sonha ser um detective quando, milagrosamente, passa para dentro do filme que está a projectar, tentando salvar a sua amada das garras do vilão.
 
Para elaborar esta mágica e poética combinação de fantasia e realidade, Keaton teve que empregar os truques técnicos e de iluminação mais complexos da sua carreira, especialmente nas sequências em que o projeccionista atravessa o ecrã.
 
 
Sem surpresa recorda-se que foi em "Sherlock Jr." que Woody Allen se inspirou no excepcional "The Purple Rose of Cairo" (1985). Mas Keaton foi maestro para várias gerações, como foi claro na série “Mr. Bean” que lhe fez dezenas de homenagens, adaptando alguns dos seus sketches.
 
"L'Inhumaine", Marcel L'Herbier (1924)


As tendências dadaísta, surrealista, cubista e futurista interessaram-se desde muito cedo pelo cinema, na medida em que era uma forma de expressarem-se mediante o  movimiento de imagens, uma inovadora e moderna forma de comunicação  artística, e que permitia ainda a manipulação técnica o que permitia satisfazer  as inquietudes dos interessados pelos novos movimentos modernistas.
 
"L'Inhumaine" enquadra-se nesta incursão do movimento modernista no cinema, contando a fascinação que exerce uma famosa prima dona, Claire Lescot, entre os homens. Contudo, mais do que a história, o que se destaca do filme é a celebração das diversas manifestações artísticas de meados dos anos 20. Para realizar este filme, Marcel L'Herbier contou com a contribuição do artista plástico Fernand Léger e do arquitecto Rob Mallet-Stevens.
 
 
Por isso, mais do que tudo, "L'Inhumaine" é uma experiência estética. Em especial a primeira meia hora, com a sua atmosfera surrealista e o seu desenho vanguardista / art-deco, que sintetiza os "ismos" da arte parisiense dos anos 20. Posteriormente esta faceta artística foi perdendo peso na produção cinematográfifca a favor do argumento.
 
"Die Nibelungen: Siegfried", Fritz Lang (1924)


Friedrich Hebbel escreveu "Die Nibelungen" entre 1855 e 1860, a história de Siegfried e a sua travessia do perigoso Bosque Mágico, onde enfrentará ogres e um terrível dragão, antes de chegar a Burgundy e conquistar a mão da bela Kriemhild. Nesse trajecto, Siegfried aprende com Mine, o ferreiro, a arte de forjar armas e no caminho para Worms torna-se invencível depois de se banhar no sangue do dragão que acabou de matar na floresta. Continuando a sua jornada épica, enfrenta e vence Alberich, ficando com o fabuloso tesouro dos Nibelungos; o Rei Gunther, com a ajuda de Siegfried, conquista a rainha da Islândia, Brunhild, e como recompensa, Siegfried ganha finalmente a mão de Kriemhild. A partir daí inicia-se um intrigante conflito humano, regado a ódio, ciúmes, amor e morte.
 
Fritz Lang adaptou "Die Nibelungen", obra mitológica germânica, em 1924, dividida em duas partes (apesar da peça dramática ter três partes): A morte de Sigfried/Siegfrieds Tod (143′) e A vingança de Krimilda/Kriemhilds Rache (150′). Com "Die Nibelungen", Lang dá o salto definitivo para se tornar um dos realizadores mais respeitados do mundo e, em particular, dos estúdios UFA como a alternativa mais sólida à maquina de Hollywood.
 
 
De facto, antes de embarcar na realização da sua obra-prima mais conhecida, "Metrópolis" (1927) e uma década antes de ter de abandonar a Alemanha com as latas do seu Dr. Mabuse debaixo do braço e com uma proposta de Goebbels para servir o regime, Lang filmou este épico que se constituiria a resposta “made in UFA” a "Intolerance" de D.W. Griffith. Mas Hollywood também gostou e convidou Lang a visitá-la, a Warner Brothers e a Universal, travando contacto com os "grandes" de Hollywood de então, como Charles Chaplin, Mary Picford, Douglas Fairbanks, Ernst Lubitsch… E permitiu-lhe ainda passear por Nova Iorque, uma cidade e um espaço que o inspiraria para a sua Metrópolis.

São numerosos os filmes posteriores que foram beber ao alento épico-hecatombico de "Die Nibelungen" de Lang. Desde logo Kurosawa e as suas batalhas entre clãs de samurais, continuando com Eisenstein e a horde a entrar a sangue e fogo pelo Palácio de Inverno e terminando em Peter Jackson e a sua Terra do Meio levantada em armas.
 
Um filme deslumbrante e para todo o sempre (e em todos os tempos) inesquecível!


"Mikaël", Carl Theodor Dreyer (1924)
 

"Mikaël", filme do mago nórdico Carl Theodor Dreyer, baseado no romance de Herman Bang, com uma subtil inspiração no clássico da mitologia grega que narra a relação de Júpiter e Ganimedes, tem um ferrete gravado para todo o sempre ao ser considerado o primeiro filme com um uma temática declaradamente "gay" masculino. Mas, mais do que isso, felizmente também é lembrado como o primeiro filme "kammerspiel" (filme de câmara).
 
O filme conta-nos a história de um triângulo amoroso entre o renomado pintor e escultor Zoret - interpretado pelo realizador de “Haxan”, Benjamin Christensen -, o seu protegido, que se tornou seu modelo, que lhe deu fama aos seus quadros e por quem se apaixonou, Mikaël - Walter Slezak, que mais tarde faria do vilão nazi em "Lifeboat" de Hitchcock - e a condessa Zamikoff (Nora Gregor), uma aristocrata "female fatale". Atraído e seduzido pela beleza da jovem condessa, Mikael começa a distanciar-se de Zoret e este começa amargurar-se com a solidão. Através de Mikaël, a condessa vive com tudo pago discretamente, pelo pintor... mas quando este descobre que o protegido modelo vendeu um quadro que lhe oferecera, assim como desenhos de umas férias, adoece. No leito de morte, Mikaël é chamado a ver o “mestre”, mas a condessa impede que este receba a carta que o convocava... “Agora posso morrer em paz, porque vi amor de verdade”, são as suas últimas palavras.

 
Co-escrito pela mulher e colaboradora de Fritz Lang, Thea Von Harbou e fotografado pelos dois maiores directores de fotografia do cinema mudo, Karl Freund e Rudolph Mate, Dreyer dá-nos mais uma obra-prima de entre as muitas da sua filmografia. Ainda que sem o sentido plástico do assombroso "La Passion de Jeanne d'Arc" (1928), aproximando-se mais dos códigos do teatro e, de certa maneira, podendo ser visto como um antepassado de uma linguagem que ganharia expressão maior no seu último filme, "Getrud" (1964), Mikaël é uma peça fundamental na filmografia de Dreyer.
 
Ao entrar-se em "Mikaël" vamos sentindo-nos progressivamente aprisionados pelos limites físicos que Dreyer impõe ao filme: circunscrito às altas paredes da casa de Zoret. É, pois, um filme sem exteriores - tão só quatro planos -, mas onde o exterior existe como ideia, como o único lugar possível para o amor, para a felicidade. O primero exterior - se é que se pode considerar assim - que nos oferece Dreyer é visualizado através de uma série de pinturas de Zoret. Este “exterior representado” decidirá a sorte de Zoret que, incapaz de livrar-se da teia do tempo passado, acabará a morrer sozinho e sem renunciar ao seu ideal.
 
 

A ideia do exterior como único lugar possível para a felicidade vai-se impondo ao longo do filme, através da consumação da relação entre Mikaël e a condessa, onde uma elipse evita mostrar-nos o que é que sucedeu durante esse tempo (numa sala presidida por uma forte decoração de arabescos - um interior com vocação de exterior -, à pergunta de Zoret “Onde estiveste este tempo todo?”, Mikaël responde-lhe, olhando languidamente o exterior não visto, “No campo”). Será precisamente esta imagem dos amantes no campo que  atormentará Zoret na última parte do filme, onde Dreyer nos mostra numa montagem paralela quase idêntica à que ensaiara em "Prästänkan" (a.k.a. The Parson's Widow) de 1920 e que posteriormente repetirá em "Vredens Dag" (a.k.a. Day of Wrath) de 1943, quando Absalom “vê” os amantes a passear a sua felicidade pelo campo.
A grande ideia temática que se desenvolve ao longo de "Mikaël", e que sustenta este jogo espacial interior-exterior, é a representação da falsidade das relações e actitudes dos personagens. Dreyer desenha o retrato de umas personagens falsas num ambiente falso:A acção decorre numa época em que o ardor e o exagero estavam na moda, e em que os sentimentos se exacerbavam voluntariamente. Uma época de certo modo muito falsa”.

En 1939 Dreyer afirmou numa entrevista que gostava de considerar "La Passion de Jeanne d'Arc" e "Vampyr" como os seus primeiros filmes de verdade. Mas em 1965 a sua actitude mudou, valorizando filmes anteriores e chegando mesmo a afirmar que "Mikaël" era um filme muito importante para ele, por ser um dos primeiros “onde se configura um estilo especial”. Hoje em dia, pensar em "Mikaël" como uma obra falhada não é possível, pois nele está o gérmen de grande parte dos interesses temáticos das suas obras posteriores, guardando um estreito vínculo em particular com algumas delas.

 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

"The Thief of Bagdad, an Arabian Nights Fantasy", Raoul Walsh (1924)


"The Thief of Bagdad" é a primeira importante adaptação das "Mil e uma Noites" e é um filme que não perdeu nada quanto à sua qualidade artística intrínseca. Produzido pelo seu próprio protagonista, a mega-estrela Douglas Fairbanks, continua a ser uma das melhores realizações do período mudo de Raoul Walsh e uma extraordinária obra do director de arte William Cameron Menzies.
 
File:The Thief of Bagdad (1924) - film poster.jpg
 
"The Thief of Bagdad" é um verdadeiro "blockbuster", com imensos artifícios cénicos e efeitos especiais, e um Fairbanks arrojado (e sem duplos) a fazer verdadeiras acrobacias circenses, no que muito contribuiu para que o filme fosse para além dos limites da realidade e criasse o ambiente de magia indispensável a esta fábula das Arábias. Mas se em "The Ten Commandments" de Cecil B. De Mille, em 1923, a abertura das águas do Mar Vermelho perante as ordens de Moisés parece aos nossos olhos de hoje pouco crível, já as acrobacias fenomenais de Fairbanks não nos deixam tempo para pensar que são truques, em vez disso aceitamos como factos. "The Thief of Bagdad"  tem uma dimensão maravilhosa de conto de fadas. Concluindo, Fairbanks e Walsh, actor e realizador, criaram cenas de uma grandeza que superou o teste do tempo.
 

sábado, 9 de fevereiro de 2013

"Der Letzte Mann" (a.k.a. The Last Laugh), F. W. Murnau (1924)
 

"Der Letzte Mann" é um dos filmes mais influentes da História do Cinema e outro superlativo título de F.W. Murnau, que tem como protagonista um aprumado porteiro de  hotel (Emil Jannings, magnífico) que perde todo o seu orgulho quando é relegado para encarregado dos lavabos. O seu sistema de valores - fundamentado, nem mais nem menos, que na honorabilidade que lhe proporcionava a sua vestimenta - vem completamente abaixo. O prestigio de que goza no barrio operário onde habita cai por completo. A possibilidade de um casamento vantajoso para a sua filha também se desvanece. Mesmo a própria família do porteiro, quando sabem do seu novo status, literalmente recuam dele em horror, como se estivessem a ver um monstro. Ou seja, todo o seu mundo de aparências cai por terra.


O seu mundo está literalmente fora de órbita: ao sair do trabalho depois da despromoção, o porteiro sente-se como se o próprio hotel fosse esmagá-lo, numa sequência com efeitos extraordinários, onde o edifício parece entortar-se na sua direcção. Mais tarde, bêbado num casamento, o porteiro cambaleia, e os balanços da câmera seguem-no, traçando arcos nervosos do ponto de vista do velho, como se o seu olhar de bêbado saltasse em redor da sala. Esta perspectiva subjectiva alinha o público com a tentativa do velho porteiro para apagar os seus sentimentos de fracasso e abjeção, na folia. Então, imbuído de uma lógica inquestionável, decide que a única solução para manter o seu status, passa por roubar do establecimento o espampanante uniforme, com o qual poderá fazer uma última "actuação".  "Der Letzte Mann" é, assim, e sobretudo, um filme psicológico, posto que boa parte da acção passa-se apenas na cabeçade nosso herói decadente. 

Murnau experimentou ao máximo, em "Der Letzte Mann", as possibilidades técnicas da câmara (Karl Freund era o operador), com o fim de reduzir os intertítulos à sua mínima expressão, e fê-lo inovando com a a cãmara a subir por elevadores, recorrendo a "travelings" que permitissem seguir permanentemente o protagonista. Ou seja, "Der Letzte Mann" foi, assim, um marco fundamental na História do Cinema, um feito impressionante, em várias técnicas quesinalizaram saltos significativos no ainda jovem cinema: não só era uma obra de arte visual pura, sem intertítulos de diálogos, mas com Murnau a inventar o uso da câmarasubjectiva, ao libertar a câmara estática.

É por isso claro que grande parte dos sentimentos que emanam deste magnífico filme são consequência directa da magistral técnica que apresentam, desde os primeiros planos, os movimentos de câmara, os picados e os contrapicados.
 
 
Outro aspecto da obra que impressiona é o cuidado na construção dos "sets". Da trivialidade do conjunto habitacional à intensa movimentação nos arredores do hotel, tudo é representado com cuidado: iluminação, objetos, infra-estrutura, veículos, etc. A curiosidade fica por conta dos letreiros escritos em Esperanto.
 
Acresce (e muito) o desempenho de Jannings que é notável, transmitindo toda a emoção deste complexo e angustiante drama social, através da sua linguagem corporal e dos seus olhos expressivos, sobre a única parte do rosto que é visível por trás do cabelo ornamentado.
 
Em resumo, "Der Letzte Mann" é um filme obrigatório e digno de estudos sobre o cinema mudo, com um poder que não diminuiu em mais de 85 anos. O cruzamento entre o director de fotografia, Karl Freund, com o argumentista Carl Mayer e o mestre F.W. Murnau originam um filme notável. Murnau estava no auge da sua força criativa.


"America",  D.W. Griffith (1924)
 
 

Em "América", Griffith focalizou o seu olho cinemático, astuto e proficiente num despertar, recriando o fiel da balança para a Guerra da Independência. Dividido entre suas convicções políticas revolucionárias e seu amor por Virgínia, filha de Tory (Carol Dempster), Natan Holden (Neil Hamilton) luta com seus compatriotas com veemência pela independência. Mas, nas encruzilhadas deste caminho para liberdade estava o Capitão Walter Butler (Lionel Barrymore), um frio assassino de casaco vermelho, que seguindo as determinações de Inglaterra, saqueava a colónia com o apoio dos índios Mohawks. Lembra claramente o enfoque dado por Griffth à escravidão e á liberdade em "The Birth of a Nation". "América" ​​foi construído em duas partes. O primeiro esboça o pano de fundo da Revolução, enquanto que a segunda parte concentra-se no drama romanesco.
 
 
Em 1923, quando Griffith começou a filmar "America", suscitou um enorme entusiasmo pela recriação da Revolução, com a marcha de Paul Revere, as batalhas de Valley Forge e Bunker Hill, e do massacre de Cherry Hill. O filme foi, assim, um sucesso de crítica, mas não junto do público, que não tinha os dramas históricos entre os seus géneros mais queridos no auge dos loucos anos vinte. O insucesso de bilheteira forçou Griffith a fechar o seu estúdio Mamaroneck.
 
 
"He Who Gets Slapped", Victor Sjöström (1924)

 
Paul Beaumont (Lon Chaney) é um cientista e humanista que, depois de muitos anos de pesquisa, descobre uma revolucionária teoria, contudo o seu protector, o barão Regnard (Marc McDermott), rouba-a e, para além disso, seduz a sua mulher (Ruth King). A ofensa é selada com uma bofetada. Beaumont foge envergonhado refugia-se num circo, onde fica famoso como o palhaço "que recebe as bofetadas" dos demais palhaços. no entanto, os caprichos do destino fazem com que numa noite se encontre entre o público o seu pérfido benfeitor, que se mostra interessado pela bela Consuelo (Norma Shearer), a qual já está enamorada por Bezano (John Gilbert), colega de Beaumont. Pese embora estes sentimentos, o pai de Consuelo tem previsto casar a sua filha por interesse, precisamente com a pessoa que destroçou Paul. Consciente disso, o palhaço que recebe as bofetadas encena uma terrível vingança, que ao mesmo tempo significará a sua oferenda de amor não correspondido a Consuelo e também a última e simbólica bofetada que recebe na sua vida.
 
Uma vez mais a aparente simplicidade do cinema mudo, permite-nos tirar uma lição moral sobre a relação causa-efeito de tudo o que fazemos nas nossas vidas, e também (e de soslaio) uma visão dolorosamente satírica da crueldade das massas.
 
 
Não foram poucos os sucessos de Victor Sjöström em Hollywood, mas foi provavelmente esta segunda incursão do cineasta sueco no cinema norte-americano (e a primeira da produtora MGM) a mais reconhecida pelo público. Para isso muito contribuiu o suporte de uma conhecida obra teatral e também a presença de Lon Chaney como personagem principal. Contudo, seria um enorme erro justificar "He Who Gets Slapped" como “um filme” de Chaney - há outros na sua vasta filmografia que retêm melhor os seus predicados interpretativos, como por exemplo o de Quasimodo em "The Hunchback of Notre Dame" (1923, Wallace Worsley). Desde o primeiro momento, Victor Sjöström dá boa conta da sua modernidade cinematográfica, da sua sobriedade narrativa, de uma estupenda direcção de actores e um surpreendente uso da profundidade de campo, que tem o seu mais claro expoente nas suas sequências circenses. O realizador nórdico utiliza com mestria a sobreimpressão, maneja a parábola com claridade mas, sobretudo, mostra-se irresistivelmente dramático através da força da imagem. E esta vertente está cheia de exemplos sensíveis e inolvidáveis, como é o caso  da declaração amorosa de Paul a uma atribulada Consuelo.
 

sábado, 2 de fevereiro de 2013

"Entr'acte", René Clair (1924)



Curta-metragem surrealista, realizada/interpretada por alguns dos mais radicais vanguardistas francesa: Francis Picabia (pintor), Eric Satie (compositor), René Clair (cineasta), Marcel Duchamp (multiartista), Man Ray (fotógrafo) e Jean Borlin (bailarino).
 
Marcel Duchamp et Man Ray

"Entr'acte" foi originalmente realizado para ser exibido na pausa (entre’acte - entre actos) do balet "Relâche", no Théâtre des Champs-Elysées em Paris, em 1924. O non-sense ao estilo Dadaísta é a marca de água deste clássico surrealista, que dialoga com questões paradoxais ligadas às lembranças, sonhos, imaginação e conta a história de uma espécie de obstinação persecutória do artista, que faz com que todas as personagens desapareçam, inclusive ele próprio como artista.
"The Navigator", Donald Crisp e Buster Keaton (1924)


"The Navigator" é um dos dois filmes de Buster Keaton, juntamente com "The General" (1926), seleccionado pelo British Film Institute na sua lista dos 50 melhores filmes de 1915 a 1945. O próprio Keaton afirmou ser esta a sua longa-metragem predilecta. Um filme que exemplifica na perfeição o rigoroso mecanismo de gags que particularizam a comédia de Buster Keaton, centrando a sua comicidade na acção e não no que o rodeia como faz Chaplin ao aplicar o gag ao pormenor.

O argumento parte de Robinson Crusoe para criar situações cómicas de signo totalmente contrário à obra Daniel Defoe. O filme mostra-nos a história de Rollo (Buster Keaton), um um jovem rico e apaixonado por Betsy (Kathryn McGuire), sua vizinha. Quando ele pede a mão de Betsy em casamento ela recusa e, depois de alguns desencontros, ambos acabam por ir parar a um navio sem mais ninguém a bordo, o "The Navigator". De seguida vemos Buster Keaton no seu zénite como personagem que não se consegue adaptar ao meio que o envolve apesar dos seus frustrados esforços, surgindo a maior parte dos gags dessa confrontação com o espaço ou uma determinada situação. 
 

A minha cena favorita, e uma das que mais me fez rir ao ver um filme, é a primeira noite em que Betsy é incapaz de conciliar o sonho pela presença de um inquietante quadro de um capitão que parece observá-la; finalmente decide lançá-lo ao mar, mas, com tamanha má sorte, engancha-se de forma que fica a balancear-se à frente da escotilha onde dorme Rollo, passando este a se o objecto da ameaçadora e sinistra observação. Gags como este funcionam a precisão e exactidão de um relógio.
 
Como era de esperar, o filme tem um desenlace apoteótico quando o barco encalha perto de uma ilha cheia de canibais. Buster tentará então reparar o barco com um escafandro antes dos canibais abordarem o barco, o que o levará a uma das situações mais surrealistas do filme, onde utiliza um caranguejo como ferramenta e se defende com outro como arma. Pese embora a sua afirmação de que quando passou para a longa-metragem teve de renunciar aos gags surrealistas, momentos como este demonstram que na realidade nunca abandonou esse tom por completo. 

"The Navigator" foi uma das muitas jóias do Cinema slapstick surgidas naquela época, que constituiu a sua idade de ouro.